quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Moinhos de Vento

Se julgava mais inteligente que as outras pessoas. Talvez fosse. 
Tivesse nascido duas decadas depois seria um maluco desbundado, com cabelos compridos e talvez até uma barba.
Se buscasse modelos de heroísmo é provável que os encontrasse nos combatentes do Al Fatah.
Calhando de viver nos idos dos 40 usava cabelos curtos e barba escanhoada, e sua vida loca era tida apenas como desregrada.
Percorreu estradas por sua conta e risco e conheceu muitos segredos que o mundo só revela aos caminhantes.
Sonhou com a glória de ser piloto da Luftwafe e escarneceu da sociedade tatuando no braço o nome da amada, coisa de marujo e de gente baixa da estiva.
Um dia, quase por acaso, perdeu-se e prendeu-se em uns versos de Kipling, da mesma forma que ocorreu com dom Alonso Quixano quando apresentado aos livros de cavalaria. 
Enlouqueceu para sempre. 
Viveu e morreu como se fosse o personagem do poema. 
Seguia o código de honra que deduziu das rimas.
Orgulhoso de si mesmo, fidelíssimo aos amigos, sem nenhum apego aos bens materiais, perdia fortunas nas mesas de jogo para provar ser capaz de refaze-las.
Um cavaleiro medieval que não devia satisfação de seus atos a ninguém a não ser a sua própria consciência.
Quase no final de sua jornada fez um dos filhos repetir-lhe o poema.
Talvez como um legado, talvez apenas para se certificar, ouvindo as palavras novamente, de ter vivido a vida certa.
Poemas escondem lá no fundo a poderosa magia primeva da criação da realidade.
Ouviu com atenção mais uma vez.


Se

Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao redor já a perdeu e te culpa;

De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para estes no entanto achar desculpa;

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,

Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretencioso;

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires;
De sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores;

Se encontrando a Derrota e o Triunfo conseguires
tratar da mesma forma a esses dois impostores;

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste;

E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;

Se és capaz de arriscar numa só parada
Tudo quando ganhaste em toda a tua vida;

E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado tornar ao ponto de partida;

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.

E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.

E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.

Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!


Rudyard Kipling (tradução de Guilherme de Almeida)

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