Já fazia tanto tempo que ele nem se lembrava mais de quando tinha desistido das outras pessoas. Vivia em seu próprio universo. Não se dava com amigos ou vizinhos. Da casa para a repartição onde passava as manhãs e o princípio das tardes acomodado na mesa da sala dos fundos, lendo o Diário Oficial em meio às prateleiras vazias do que fora o arquivo geral. Com a implantação do sistema de computador as fichas haviam sido há muito digitalizadas mas a burocracia se esquecera de transferi-lo de função. Tinha gostado. Passava dias sem trocar palavra com ninguém.
Os colegas já habituados àquela figura arredia só se admiravam com a discrepância entre sua aparência e o cargo ocupado. De boa figura, sempre impecavelmente vestido num estilo "casual" devia ser pessoa de boa situação econômica. O chefe que conhecia o parco valor dos proventos se mordia para descobrir de onde viriam os recursos do funcionário. Nada de muito misterioso. Tinha herdado alguns apartamentos de aluguel do pai, além daquele em que morava. Amplo, num bairro bom.
Em casa, ouvia Mozart e montava miniaturas de automóveis. Nada queria da vida. Não tinha queixas nem desejos. Apenas vivia. Como uma pedra no leito do rio ou um arbusto no jardim. Nem mesmo com mulheres se envolvia. As vizinhas solteiras que tentaram se insinuar foram repelidas por uma indiferença delicada que rendeu-lhe no condomínio a fama de ser de masculinidade duvidosa. Pouco se lhe dava o que diziam dele.
Hoje, como de costume, bateu o ponto na hora exata e saiu em busca do ônibus. Começava a cair uma chuvinha fina. Não mudou o ritmo da caminhada. Seguiu distraído, apreciando o frescor que tomara a tarde quente.
Chegando ao abrigo tropeçou num sorriso que, perdido, precisava saber a melhor opção para chegar à Savassi. Tome o 43. As palavras foram brotando, a princípio devagar, tímidas, para logo jorrar numa fluência nunca vista. E o sorriso as vezes se transformava em uma gargalhada e de novo voltava a ser sorriso. Ele nunca foi tão feliz. Olhe é o seu ônibus, o 52. Obrigada.
Ao subir os degraus fotografou no coração a imagem do sorriso. Uma moça loura de cabelos curtos, talhe delgado, pernas perfeitas, vestida com um tailleur de linho azul e usando um fio de perolas no pescoço.
Tentou descer mas o ônibus já tinha virado à direita na esquina aproveitando o sinal aberto. Coração na boca, viveu uma vida até poder saltar no ponto seguinte, duas quadras à frente. Voltou correndo já debaixo de uma chuva forte. Chegou na esquina a tempo de ver o 43 cortando a rua e seguindo pela avenida. Levantou o braço num esforço inútil para deter o veículo. Sentiu a boca amargar. Ficou olhando a moça do cartaz publicitário da traseira do ônibus ir diminuindo até sumir por completo numa curva à esquerda.
Dois colegas de repartição pararam no sinal mas não lhe dirigiram a palavra. Sujeito estranho, tomando chuva do lado do abrigo.
Caminhou até o abrigo.
O sorriso se surpreendeu: Uai! Você voltou? O 43 passou direto.
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