Vinha flutuando no céu, por entre prédios e árvores, surfando no vento quente que tomara a cidade.
Ia de um lado para o outro, para cima e para baixo, de uma esquina até a outra, em espirais caprichosas, difíceis de adivinhar.
Às vezes parava bem alto, e nestes instantes de pausa, olhava meio enfadado, a vida fluindo lá embaixo.
Viu a menina Marina cantando para a boneca, planejando brincadeiras.
Viu a Julia, no uniforme da escola, esparramada na cama, com o telefone na mão, fuxicando no face do Duda, um ficante interessante e sumido há muitos dias.
Viu Germano, no balcão do botequim, lendo pela terceira vez o mesmo jornal de outro dia.
Viu Zaíra passeando as três poodles pela praça, mas de olho na Clarisse, casada com o Damião, que conversava animada com um rapaz bem apanhado que não se sabia quem era.
Viu seu Nicácio, nervoso, conversando com Welington, porteiro do prédio verde, sobre os malfeitos do síndico e a preguiça da faxineira.
Viu o ônibus parar preguiçoso, deixar dona Lourdes com as compras e levar o seu Antônio, de paletó e gravata, para visitar a Neidinha lá no alto das Mangabeiras.
Viu os micos barulhentos, comendo as frutas roubadas, fazer o caminho de volta, do condomínio para a mata, se balançando suspensos pelos fios da rede elétrica.
E quando o vento passou, e o chão foi se aproximando, ainda viu dona Dulce, entre rindo e soluçando, tentando reunir de novo os pedaços, que junto com ele trouxeram, num formato tão antigo, uma folha de papel, um pedido de perdão.
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