terça-feira, 7 de outubro de 2014

A menina de verde

Estava descalça, tinha os cabelos curtos e claros, quase louros.
Vestia um traje verde, acolchoado nos joelhos e cotovelos.
Compenetrada, respirou fundo, apertou as rédeas na mão e levou o cavalo a trote pelo longo corredor até a entrada do enorme picadeiro.
Já num meio galope, ouvia os aplausos e gritos de incentivo enquanto ia executando acrobacias que arrancavam exclamações de admiração e incredulidade.
A série de exercícios ia se repetindo e o cavalo circulando em torno do tablado central.
Aos poucos, o ruído das palmas foi sendo abafado pelo de uma voz conhecida que ficava cada vez mais alto até se tornar o único som em sua cabeça.
- Vamos almoçar ?
Encostou o cavalo na mesinha da sala e emburrou.
Não quero, e trancou a boca.
Ia ser uma ginasta.
Ginastas são muito fortes, não precisam almoçar.
Venceu pelo cansaço e dormiu sem comer.

No meio da tarde acordou vitoriosa e saiu para o passeio de sábado.
Cavalgou nos ombros do pai até a floresta da praça, onde as arvores, que se erguiam até o céu, escondiam bandos de passarinhos nos galhos de cima e todos aquele bichinhos engraçados entre as raízes. Correr pelo chão de pedras brancas e vermelhas que não se acabava nunca, conversar com os peixes do tanque, brincar com outras crianças, disto ela sempre gostava.
Ia ser arquiteta, reprojetar o mundo como uma imensa praça e todo almoço ia ser de pipoca e algodão doce.

Já meio escuro fez o caminho de volta na cadeirinha dos braços do pai.
Vinha viajando entre as luzes das vitrines, colecionando novidades e surpresas, até encantar-se com um novo amigo, o coelhinho de pelúcia rosa mais macio do mundo.
Agradeceu com um beijo registrado para sempre na memória do pai.
Ia ser psicanalista e entender a alma das pessoas.

Muitos anos depois, sentada na varanda, pés descalços repousando num tapete de sol, olhou o fundo da xícara e viu refletido no chá a imagem de uma menina franzina, vestindo um traje verde, gineteando o cavalinho de pau com um coelhinho rosa.
Levou a xícara aos lábios e sorveu a lembrança.

Traçara seu próprio curso cavalgando o destino em pelo, mãos firmes a segurar-lhe as crinas.
Agora era gente grande, o mundo lhe parecia pequeno e almoçava quando queria.
Procurou os sapatos, fez um carinho no gato e foi cuidar da vida.
Foi vestir um traje verde.


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