Era o inicio da noite de um dia difícil e chegar em casa não estava ajudando nada.
O elevador estava quebrado, a lâmpada do banheiro não acendeu e as duas cartas de cobrança não trouxeram boas notícias.
Tomou banho no escuro, demorando-se mais do que o costume, desejando que a água quente, que escorria pelo ralo, pudesse levar o ódio que a preenchia desde o instante em que o gerente da loja veio com a conversa de que ia lhe "dar um feedback" e recitou um discurso pontuado por palavras em inglês, elevando o tom quando dizia profissional e metas.
Não conseguira ouvir nada, permanecera todo o tempo da espinafração com os olhos fixos na Rita, que na outra ponta da loja, fantasiada com asas de fada e antenas de abelha tal como ela, atendia uma cliente que procurava um brinquedo para uma criança de dez anos, e não servia jogo, eita coisa difícil.
Não contestou o João Vitor, ficou só imaginando como seria bom se livrar daquele emprego.
Há poucos meses, tudo ainda corria bem, era gerente de crédito numa importadora, começara o mestrado, financiara um Palio 2009, mobiliara com gosto aquele dois quartos alugado, e seu rolo com Jonas estava ficando sério.
Por artes do destino, quase por nada, na verdade por causa de uma piada mal compreendida, os sócios se desentenderam e a firma fechou.
Durante alguns tempo ela tentou um trabalho que lhe proporcionasse o mesmo salário.
Seu saldo bancário drenado pelos múltiplos financiamentos fez com que fosse baixando suas expectativas até chegar à loja de brinquedos.
Antes de se transformar numa vendedora foi aos poucos se desfazendo das conquistas, que lhe eram tão caras, devolveu o carro, abandonou o mestrado, vendeu a televisão moderna.
Fez-se forte e achou alternativas para sobreviver na cidade grande, renegociou o débito do cartão de crédito e do cheque especial, conseguiu a Rita para dividir o apartamento.
Não ia voltar para o Carmo derrotada.
O que a amargurava mesmo era ter perdido o Jonas, em que ela tinha investido tanto.
Queria muito casar, ser mãe de família e já não era tão jovem.
Tirou a caixa de leite da geladeira e buscou no armário a caçarolinha e a colher grande.
Abriu a lata de Nescau e viu que a quantidade não dava para fazer brigadeiro.
Estava chorando baixinho quando a Rita chegou despejando assunto.
Amiga, nem te conto, sabe aquele cara da agência de viagens que você interessou ?
Pois é, veio perguntar montes de você.
Dona Lurdes deu a maior bronca naquele prego do João Vitor, projeto de gerente.
O representante da Mattel deixou brinde para nós, chocolate, olha que delícia.
A Rita não existia.
Recebeu o abraço amigo sentindo que a água do banho tinha lavado sua alma.
Foi dormir em paz com o mundo.
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