segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Os que vão morrer te saúdam

Outro dia, vendo os netos já sendo gente, por um instante sentiu o passar do tempo.
Mais que sentir saudades da juventude, se assustou com a velhice.
Fugindo do súbito frio dos muitos invernos embrulhou-se nos versos de Longfellow e quase se envergonhou de fraquejar.
Caminhou de volta ao centro da arena e prestou tributo à graça da vida.
Os que vão morrer te saúdam !




Morituri Salutamos - Henry Wadsworth Longfellow
[ Tradução em prosa de Cunha e Silva Filho ]

......É tarde demais! 
Ah, nunca é tarde demais até que o coração cansado cesse de palpitar. 
Catão aprendeu grego aos oitenta;
Sófocles escreveu ‘Édipo’, sua obra-prima, e Simônides teve versos premiados por seus confrades, quando já passavam disso, 
e Teofrasto, já aos noventa, começou seu ‘Caracteres dos Homens’. 
Chaucer, com os rouxinóis de Woodstock, compôs aos sessenta os ‘Contos da Cantuária’; 
Goethe em Weimar, com sacrifício, concluiu o ‘Fausto’ já depois de octogenário. 
São, certamente, exceções; 
porém mostram até quão longe pode fluir a corrente quente da juventude em direção às regiões árticas de nossas vidas, onde pouco mais sobrevive senão o próprio viver (...). 
Mas seja o que for que o poeta, orador ou sábio possa dizer dela, 
a velhice é sempre a velhice: 
é a lua minguante, não a crescente; 
a claridade do crepúsculo, não o clarão do meio-dia; 
não é força, e sim fraqueza; 
não é o desejo, mas o fim dele; 
não é o calor terrível do fogo que consome,
mas o das cinzas e brasas entre as quais se mantêm algumas fagulhas vivas, bastantes para aquecer, mas não para queimar. 
Fazer o quê, então? 
Sentar-se, apaticamente, e dizer que a noite chegou, e dia não há mais? 
A noite não chegou ainda, e o simples cair da tarde não nos libera do trabalho.
Algo resta em nós para fazer ou ousar. 
Mesmo a árvore mais velha pode dar algum fruto (...). 
A velhice pode ser oportunidade não menor que a própria juventude, 
ainda que com outra roupagem. 
E é quando vai anoitecendo que o céu se enche de estrelas, que de dia não dava para ver.

........Its too late ! Ah, nothing is too late
Till the tired heart shall cease to palpitate.
Cato learned Greek at eighty; Sophocles
Wrote his grand Oedipus, and Simonides
Bore off the prize of verse from his compeers,
When each had numbered more than fourscore years,
And Theophrastus, at fourscore and ten,
Had but begun his "Characters of Men."
Chaucer, at Woodstock with the nightingales,
At sixty wrote the Canterbury Tales;
Goethe at Weimar, toiling to the last,
Completed Faust when eighty years were past.
These are indeed exceptions; but they show
How far the gulf-stream of our youth may flow
Into the arctic regions of our lives,
Where little else than life itself survives.


As the barometer foretells the storm
While still the skies are clear, the weather warm
So something in us, as old age draws near,
Betrays the pressure of the atmosphere.
The nimble mercury, ere we are aware,
Descends the elastic ladder of the air;
The telltale blood in artery and vein
Sinks from its higher levels in the brain;
Whatever poet, orator, or sage
May say of it, old age is still old age.
It is the waning, not the crescent moon;
The dusk of evening, not the blaze of noon;
It is not strength, but weakness; not desire,
But its surcease; not the fierce heat of fire,
The burning and consuming element,
But that of ashes and of embers spent,
In which some living sparks we still discern,
Enough to warm, but not enough to burn.


What then? Shall we sit idly down and say
The night hath come; it is no longer day?
The night hath not yet come; we are not quite
Cut off from labor by the failing light;
Something remains for us to do or dare;
Even the oldest tree some fruit may bear;
Not Oedipus Coloneus, or Greek Ode,
Or tales of pilgrims that one morning rode
Out of the gateway of the Tabard Inn,
But other something, would we but begin;
For age is opportunity no less
Than youth itself, though in another dress,
And as the evening twilight fades away
The sky is filled with stars, invisible by day.

sábado, 15 de novembro de 2014

Terceiro Turno

Ministério Público e Policia Federal comemoram o sucesso da operação Lava Jato.
O País foi dormir mais republicano é o que dizem.
Editoriais, manchetes e epigrafes de processos sentenciam a chegada do Juízo Final.
Políticos de todos os partidos perdem o sono e desligam os celulares.
A oposição comemora a confusão um tanto ressabiada, pois ninguém sabe o que vai sair do inquérito.
O povo ? O povo não vê nenhuma novidade, sabe, já faz tempo, que as engrenagens dos poderes da república só são azeitadas com muito dinheiro.

Mas o povo, que sempre soube, cismou agora, ora vejam,  de assuntar.

A maioria silenciosa descobriu o facebook e se empodera, sem precisar de verbas do Ministério da Cultura. A estratégia do PT de acirrar a luta de classes funcionou, mas vem com um efeito colateral, esta politizando o "outro lado".  Quando a conversa no ônibus era sobre corrupção podíamos imaginar que era só uma forma de fazer passar o tempo mas quando o assunto das conversas passa a ser a descoberta da existência do Foro de São Paulo ...

Vai surgindo cada vez com mais evidência uma fratura na sociedade e as estratégias de cada lado vão se definindo.

Enquanto o bom menino Aécio e o PSDB rejeitam envergonhados o apoio da extrema direita, que tem muitas de suas teses defendidas até por eleitores de Dilma, o PT não abre mão da militância dos radicais de esquerda. Quem achou que viu o diabo nas eleições, não viu foi nada, agora é que a onça vai beber água.

A briga vai ser feia, mas Dilma e o PT vão ter que errar muito para serem derrotados neste terceiro turno. Eles são profissionais jogando contra amadores, entusiasmados, mas amadores.

Conversando com minha bola de cristal descubro que o governo, que hoje parece que acabou antes de começar, e que é contestado em sua própria base, provavelmente vai repassar a conta do novo malfeito ao Congresso e seus quinhentos picaretas, inclusive - sorry, just business - aliados.

Vem aí, comandada pela presidenta faxineira, a campanha pela "reforma política", o santo remédio que, vai impedir os empresários gananciosos de corromperem os funcionários públicos, concursados, nomeados e principalmente os eleitos.

Aécio, acha que ganhou a eleição, Dilma sabe que quem ganhou foi ela, deve estar lendo as machetes e debochando sabe de nada inocente.

Qual será a margem de erro das bolas de cristal ?




domingo, 9 de novembro de 2014

Sexta Feira

17:30
No monte de São José
Ana Rita passa roupa, pensa no Zum, e se assusta de novo com a notícia da gravidez.
A médica do posto já tinha confirmado, ela é que ainda não tinha tanta certeza.
Bala Chita tenta morder a alça solta da rasteirinha de Ana Rita que esta dançando em sua frente.
No morro das Pedras 
Roberta tira do freezer uma das três formas de pastel que preparou para a noite de sexta feira e reza pra não ter confiado muito na sorte. O comércio anda muito ruim.
Gera Doido se sente aliviado com o apoio do Zum, de dois ia ser mais fácil fazer o ganho e se acertar com o Vitor.

17:40
No monte de São José
Ana Rita atende o celular. O Zum tinha aparecido, estava na quadra da Gentios.
Veste o top novo da Juliana e troca o shortinho por outro mais curto.
Vai pagar pau pro namorado sumido.
Vai dizer que desistiu de trabalhar no restaurante, que topa ir morar no lote da mãe dele.
Nunca mais brigava com o Zum.
Nunca mais ia se importar com a cara feia de Dona Climércia
No morro das Pedras
Zum estava com saudades da Ana Rita e já se sentia cansado de esperar.
Tinha armado para encontra-la por acaso, ela sempre ia zoar na esquina da Gentios.
Gostava muito dela, mas também gostava de sair com a Jessica, não podia deixar as duas trabalhando no mesmo emprego.
Nada dela aparecer, e ele que não ia perguntar, não ia dar ideia a ninguém.
Quem apareceu foi o Gera Doido.

17:45
No monte de São José
Ana Rita vê a mãe e a irmã chegando pelo terrão e desiste de tomar o ônibus na Raja, vira à esquerda e segue pela Sete Câmara cortando o bairro a pé.
Bala Chita vai junto, passeando, ora à frente, ora se atrasando com as novidades do caminho.
Zum cismara de ter ciúmes com o trabalho que ela conseguira no restaurante.
Tão pertinho, dinheiro tão bom.
Cismara e sumira, há quase uma semana, nem celular atendia.
Entrou no matagal pelo buraco do muro e foi batendo a trilha até o beco da creche.
Parou um instante para se arrumar.

18:00
No morro das Pedras
Ana Rita vai andando devagarzinho pelo beco ensaiando a conversa com o Zum.
Ia dizer que gostava dele e que só ia trabalhar onde ele deixasse.
Deixava para contar a novidade depois.
Viu primeiro o Gera Doido, olhando de um lado para o outro procurando alguma coisa.
Só depois viu o Zum, parado no semáforo, no canteiro central, conversando com um motorista.
Tão bonito o Zum, tenis shox, bermuda branca, boné da Nike.
Esqueceu o que queria falar, levantou o braço e chamou alto. 
Zum !
Ele vinha atravessando, sorrindo, uma bolsa na mão esquerda, uma automática na direita.
Seus olhares se encontraram.
O dela transbordando de esperança, o dele navegando na surpresa.

18:01
No morro das Pedras
A bala do tiro, que o motorista errou, encontrou a testa de Ana Rita e a derrubou no passeio.
O segundo disparo, que ela nunca ouviu, atingiu a nuca do Zum que ficou caído no asfalto.
Gera Doido, saltou o corpo da moça e protegido pela carroceria dos ônibus parados no ponto de embarque, saiu vazado pela Raja Gabaglia.
Passou direto pela cancela do terrão e entrou em um ônibus que seguia para o centro.

18:10
No monte de São José
Juliana chora alto abraçada com a mãe.
Ela sabia que notícia ruim sempre é verdadeira.
No morro das Pedras
Dona Arnaldina, merendeira da creche,  acende uma vela ao lado de Ana Rita e espanta Bala Chita, que teima em morder a tira da rasteirinha.
Roberta tira a segunda forma de pasteis do freezer e pede ao marido para buscar mais cerveja.
O trânsito trava nos dois sentidos da avenida.
Jessica chora baixinho, segurando a mão do Zum, ele ainda não sabia que ela estava grávida, com certeza ia largar da outra.
A terceira viatura da polícia chega para ajudar a organizar a ocorrência.

22:15
Na pedreira Prado Lopes
Gera Doido descobre que o combinado não é caro.
Vitor, passa uma descompostura em Ginguinha: pra quebrar este aí não precisava gastar três balas, deixasse o bico no manual.
No Luxemburgo
Bala Chita perambula pela Gaicuí procurando Ana Rita que a deixou sozinha no mundo






Transumanizando


domingos são dias de Deus.
  dias de nós.
     dias de agradecer por simplesmente ser 
   de poder conhecer o que também é 
     de imaginar o que mais será

domingos são dias de sonhar 
  de acreditar que as estrelas 
    podem ser alcançadas
  
domingos são dias em que todo amor é possível

nos domingos quando há sol dá pra ver o paraíso
nos domingos ,às vezes, somos um pouco mais que humanos

Divina Comédia
Paraíso - Canto I

[ Dante Alighieri  na tradução em prosa de Helder da Rocha ]

Com o olhar fixo, Beatriz encarava o Sol sem piscar,
como águia alguma jamais teria feito.
Como um raio, seu olhar se infundiu em minha mente
que se deixou inundar com o reflexo da sua luz
e fez com que eu também fitasse o Sol
por mais tempo que eu seria capaz.

Naquele lugar sagrado,
muito mais coisas são permitidas aos sentidos humanos que aqui na Terra.
Não pude olhar muito,
mas o suficiente para ver a esfera do Sol
contornada por faíscas,
como fogo escapando de ferro derretido.
Subitamente, pareceu-me que um dia iluminava o dia seguinte,
como se Deus tivesse decorado o céu com outro Sol.

Livre da luz que preenchia as alturas,
virei o olhar para Beatriz,
que permanecia fitando o Sol.
E então senti uma coisa que eu seria incapaz de descrever.
Algo similar, talvez, à transformação sofrida por Glauco,
ao provar a erva que o transformou em um deus.


 quando Beatrice in sul sinistro fianco
vidi rivolta e riguardar nel sole:
aquila sì non li s'affisse unquanco.

E sì come secondo raggio suole
uscir del primo e risalire in suso,
pur come pelegrin che tornar vuole,

così de l'atto suo, per li occhi infuso
ne l'imagine mia, il mio si fece,
e fissi li occhi al sole oltre nostr'uso.

Molto è licito là, che qui non lece
a le nostre virtù, mercé del loco
fatto per proprio de l'umana spece.

Io nol soffersi molto, né sì poco,
ch'io nol vedessi sfavillar dintorno,
com'ferro che bogliente esce del foco;

e di sùbito parve giorno a giorno
essere aggiunto, come quei che puote
avesse il ciel d'un altro sole addorno.

Beatrice tutta ne l'etterne rote
fissa con li occhi stava; e io in lei
le luci fissi, di là sù rimote.

Nel suo aspetto tal dentro mi fei,
qual si fé Glauco nel gustar de l'erba
che 'l fé consorto in mar de li altri dèi. 










segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Porto Seguro

Quando a banda começou a tocar um forró ela seguiu com o mesmo par. A conversa não era tão boa, ele não era tão bonito mas dançava muito bem, e ela adorava forró.
Viajou na música, entre um xote e um baião, se esparramando num pé de serra e vendo seu mundo caber inteirinho no salão.
Com o namorado ausente tinha se dado o vale-night. Não procurara as amigas, tinha saído sozinha, levando aquela sensação de que alguma coisa tinha sumido e que seus recentes quarenta anos tinham vindo cedo demais.
Aquela noite ela se acabou, dançou muito, bebeu várias caipirinhas, foi alvo de muitas atenções
mas desvencilhou-se das cantadas com habilidade e bom humor, ninguém era tão interessante e afinal, tinha um namorado.
Acabado o baile, não era de ferro, resolveu dar uma chance ao sujeito do forró e experimentou o beijo. Não foi bom.
Pois é. Preciso ir. Mesmo. A gente se vê.
Saiu dirigindo devagar, escutando o chiado dos pneus que rolavam pelo asfalto ainda molhado por uma chuva que ela não vira cair.
Na altura da Gameleira ligou o rádio, e com os Foo Fighters berrando palavrões em seus ouvidos acelerou pela cidade vazia.
Não pensou no Paulo, não pensava nele já fazia algum tempo. Tinham se envolvido logo após o divórcio, quando buscava nas baladas e muitos churrascos, com novos e velhos amigos, voltar no tempo e se reajustar ao mundo.
Paulo era um cara bacana, ótima companhia, mas as ausências constantes já tinham lhe mostrado que ele não era de maneira alguma essencial.
A noite cobrou uma dose de açúcar. Estacionou no MacDonalds e entrou na loja, não gostava de drive-thru. Pediu um milk shake e uma torta de maçã.
Já estava terminando quando ouviu seu nome.
- Irene ? Capeta !
Quase não reconheceu o Alex, cabelos bem cortados, bronzeado, vestido com uma roupa bacana, e com o que pareceu ser um rolex no pulso.
Os olhos e o sorriso eram mesmo os daquele colega bagunceiro e desleixado do segundo grau.
Na escola durante todo o curso pouco se falaram mas por artes do acaso, da lua e do mar de Porto Seguro tinha ficado com ele na viagem de formatura, a primeira vez em que traíra um namorado.
Não se viam desde aquela época.
Irene sentiu um calorzinho no coração.
- Voce esta sozinha ?
- Bom, eu tenho um namorado...
Os dois sorriram, fora com este mesmo dialogo que tinham iniciado uma conversa, parece que hoje de manhã, sob o sol de uma praia da Bahia.